Meu pai sempre viajou na época da adolescência. Naquele tempo, havia mais propostas de emprego do que pessoas procurando. E olha que ele nem era tão antigo assim. Em meados dos anos 50, o rádio não era invenção velha e a TV em cores ainda não tinha chegado ao Brasil. Foi alfaiate, a mesma atividade exercida por quase todos da família, terminando seus dias mais ativos com o cargo de comerciante.
Num dia de domingo, o qual não recordo a data – fiz questão de esquecê-la – ele me surpreendeu com uma viagem que precisaria fazer, a contragosto da família. Embarcava para Salvador, devido a uma enfermidade que havia lhe acometido o corpo, de tal gravidade que não se achava capaz de andar ou sentir qualquer sensação da cintura para baixo. Senti, nesse dia, algo diferente. Não digo que fosse a doença ou a viagem em si, mas penso que a sensação era por mim ainda desconhecida. Eu a desvendaria mais tarde.
Ficou por seis meses em tratamento, de pouco sucesso. Nós o acompanhávamos todo o tempo, renovando a companhia necessária a cada quinze dias, porque a idade dele permitia que não ficasse sozinho. Sorri algumas vezes, fiz amigos, criei medos, expectativas. Um mundo todo novo abriu-se para mim; com ele, uma tonelada de angústias e indecisões invadia meu ser. Queria voltar para casa. Gostaria de ver meu velho recuperado. Passaram-se seis meses nada animadores.
Voltamos para casa. À nossa espera, alguns amigos, meu irmão e minha mãe, o cachorro e o gato. Certos curiosos. Quase não o reconheceram, tamanha mudança física e psicológica que havia se processado naquele homem. Mas suas ideias, hábitos e ambições estavam no lugar. Tudo parecia normal. Os dias passaram com a rapidez do vento e logo ele ganhava aquele corpo de antes, o mesmo que o tornava reconhecível à vista dos ignorantes que lhe traiam pelas costas.
Precisava fazer mais uma viagem, e esta seria a última. Fato que ele não nos avisou, porque seria uma surpresa. A mais articulada experiência do destino se processaria em breve, ao tempo em que eu me lembrava daquele vago sentimento que me assaltou quando meu pai viajou na época em que adoecia.
De tudo quanto sucedeu, só não imaginava que essa viagem aconteceria sem que nos despedíssemos. Sem um adeus, mesmo que de longe. Ao amanhecer dos últimos dias de estadia de uns parentes meus, quando apenas eu e uma tia estávamos por perto, papai sairia repentinamente de nossas vidas, agonizando num instante final, desesperadamente à espera da enfermeira que traria os remédios da salvação. Numa atitude insana e inconsciente, minha tia olhou o relógio e viu que não dava mais tempo. Restava ainda uma oração, um beijo. Já era tarde. Havia partido gloriosamente e ascendido a algum lugar que ainda não fui.
Não choramos, até porque ele mesmo não chorou. Reunimos a família e cantamos louvores tristes. Só então choramos. Superamos, aos poucos, sem esquecer, contudo, aquela que seria, para ele, a última viagem.
Pauta para o bloinquês: 67ª edição conto/história "Olhou o relógio e viu que não dava mais tempo".
Damião, querido. Palavras de quem sabe o que escreve, não é mesmo?
ResponderExcluirVejo que gostou do Bloínquês, lhe digo logo que isso vai se tornar um vício. Pra mim já é meu vício que assumo com satisfação, embora meu tempo esteja curto para participações, faço o que posso.
O texto está divinamente escrito como todos os outros. És dono de palavras que cativam.
Grande beijo;